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MEMÓRIAS

Acordei bem cedo, muito mais que o normal. Era sábado.  Verdade é que durante os dias da semana, tinha uma preguiça aguçada para levantar, tomar banho e me arrumar para ir à escola. Nem sei se fui eu que despertei abruptamente ou se era a magia da época dos papagaios que me abriu os olhos, tomou-me pelos braços e ergueu-me em direção à porta dos fundos da casa.
A reação instintiva que tive foi olhar para os céus. Creio que eram cinco e meia da manhã mais ou menos. Vi o dia acordando e me dando bom dia. Sorri, e uma sensação de dia bom envolveu-me a alma naquele instante. Arregalei os olhos nas nuvens a busquei aquelas que denominavam que o dia seria ensolarado, bom para minhas investidas. Estudei cada nuvem na busca primeira dos Nimbos e dos Estratos. Ah como eu sorri por não vê-las tão cedo! Queria mesmo que nenhuma sequer me acompanhasse naquele dia. A presença do sol era suficiente para fazer o meu dia feliz. E eu queria ser feliz naquele dia.
Então, caleidoscópica e milimetricamente fui pesquisando a imensidão do céu, assim, de dia mesmo, como quem busca a felicidade. Naquele instante eu era um exímio meteorologista, sem diplomas, sem cadeiras complexas sobre ar, atmosfera, nunca entendendo o que era linha do equador ou os trópicos. Vasculhei cada palmo do céu, e a manhã, naquele efêmero instante, era minha cúmplice. Os meus olhos brilharam, o sorriso me apertou o coração. Consegui sonhar, ali, meio acordado, meio dormindo, com a pureza que toma qualquer criança da minha idade. E eu tinha uns dez anos.

Ao final da minha profunda e minuciosa vistoria aérea, consegui arrumar mais razões para encantar-me com aquele pedaço inicial de dia: vislumbrei uns Cúmulos e uns Cirros. As nuvens altas e esparsas, como que paradas, faziam estáticos meus olhos. Olhei para as palhas dos coqueiros dos vizinhos, buscando que o vento movimentasse cada uma como se fosse sob minha ordem. Senti o desejo de ser senhor dos ventos e impor-lhes direção e velocidade. A minha vontade saltava aceleradamente e o coração batia em igual  compasso . Parece que agora eu tinha acordado definitivamente. Tinha certeza de que seria um dia inesquecível. Seria um dia diferente. Mas em minha mente, não sabia nem definir esses adjetivos. Na verdade só queria que o dia fosse bom para o meu propósito de criança.
Desapeguei-me do instante cientista-pesquisador do tempo, corri para o quarto. Eu esbanjava a titularidade de ser criança. Tomei uma toalha e corri ao quintal da casa, a fim de tomar um banho à beira do tanque. A água estava fria e esfriou-me o corpo todo, despertando-me de alguns resquícios de sonolência que ainda insistiam em teimar me acompanhar naquele momento. Tudo foi rápido e creio que me esqueci de me lavar melhor com certeza. Estava mais preocupado em terminar logo tudo aquilo e ir à rua o mais rápido possível. Tinha compromissos com a linha, o papagaio, o cerol, o algodão e o vento. Todos cúmplices dos meus devaneios.
Terminei, enfim, aquele necessário ritual.
– Quero saber qual a razão do senhor acordar tão cedo hoje? Resolveu levantar junto com as galinhas? – era minha mãe, certamente, admirando-se das horas que marcavam o relógio e eu correndo para o quintal tomar banho. Essa anormalidade causou nela espanto.
– Mãe, hoje vai fazer um belo dia para empinar papagaios. Hoje é sábado.
– Queria que todos os outros dias da semana você fizesse do mesmo jeito pra ir pra escola. Pelo contrário: todo dia é uma penitência para pra acordar e mais ainda pra se arrumar.
– Ah, mãe, hoje é sábado. Vumbora esquecer esse negócio de escola.
Tomei café com muito mais vontade e apetite que os dias normais. Em minha mente, já tinha um plano traçado de não fazer mais nenhuma refeição. O meu dia era céu e terra numa só proporção.  Não haveria perda de tempo com comida.
Fui correndo ao meu quarto, peguei um dinheiro que havia guardado durante a semana e corri ao comércio mais perto. Comprei algodão. Os papagaios já estavam prontos. Fiz todos durante a semana. Na sexta à noite já havia separado uns bons vidros para o cerol – fundos de garrafas brancas, fragmentos de vidros de televisão –, pois no sábado não queria perder mais tempo com nada. Antecipar, em minha mente de criança, já era julgado como um ato de inteligência. Antecipar era perceber situações e presentear-se da ausência de preocupações contornáveis e evitáveis. Essa lição já aprendera empinando papagaios.
Outrora, não fazíamos os rabos dos papagaios – ou rabiolas, como alguns chamavam – com plásticos, como hoje vejo que as crianças fazem. Algumas coisas eram tão diferentes, mas quando olho hoje uma criança com os olhos brilhando, mirando os céus, seguindo o balé das pipas, recordo-me de cada detalhe, carinhosamente guardado em minha mente, relembro cada instante, eternizado em meu coração, de quando era criança.
Estiquei um pedaço de linha, amarrada ao portão de casa e comecei a tecer, com ela e o algodão, um rabo para os meus papagaios já prontos. Cada fragmento era posto com carinho, delicadeza, perícia e articulada paciência, Os pequenos pedaços brancos adornavam a linha, em espaços quase perfeitos, e tudo ia tomando forma. Era uma mistura de arte e engenharia, de teoria e prática.
Era muito cedo e o calor do sol não se sentia ainda. O vento, esse mesmo também não havia sinalizado sua aparição, como se esperava. Mas isso não esfriava o ímpeto que efervescia em minha mente. Eu respirava cada instante com ardente volúpia. Entre uma colocada de algodão na linha e outra, o olhar fugia em viagem aos céus, ao sol, às nuvens. Meu espírito de exímio conhecedor e mestre do tempo ainda permanecia nos olhos tesos, direcionados o alto. Os minutos eram divididos entre a linha e algodão, entre céu e terra.
A liberdade de viajar sem sair do lugar– e quem disse que eu queria sair mesmo? – exalavam, naquele momento, no espaço, a tônica da junção homem e natureza, ou melhor, criança e natureza e pincelavam, assim, os painéis mais naturais que podem ser aguardados desse encontro, desse casamento, desse abraço.
Todo esse ensejo se debruçava abaixo do canto matinal dos pássaros. Eles apareceram, neste dia, mais numerosos que no dia anterior. Talvez em razão da chuva que resolveu rascunhar a sexta feira com suas cinzas nuvens, seu clima mais frio e sua pálida máscara, escondendo o sol.


To Be Continued
            By Jahilton Magno                                          21.03.14










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