Boa tarde, dona Vida. Hoje é quarta feira. Ando meio perplexo com os acontecimentos com os quais a humanidade anda construindo. Sim, isso mesmo, a construção de alguns fatos tem me mexido o íntimo e estou perdendo a capacidade de entender o funcionamento das coisas. Sou adulto, e até onde consta a coerência e a naturalidade das coisas, confesso que não estou acostumado com certas anormalidades - na verdade, anomalias, em meu entendimento. Quando eu era criança, amiga Vida, aprendi a me vestir de alegria e caminhar ladeado pela liberdade e inocência com muita pureza. Os meus olhos não conseguiam ver maldade em tantas coisas. A verdade é que eu interpretava maldade geralmente naquilo que pudesse causar dor em mim ou em outro amigo. Fora isso, não a entendia de outra forma.
Nosso descompromisso com qualquer coisa era algo tão natural, como naturais eram os dias que embalavam nossas vidas. Tudo não passava de pura ingenuidade. Ser criança era viver fatos e atos concernentes somente a essa época. Experiências não encontradas em outra fase da vida. Ser criança era ter a possibilidade de dormir com a ânsia de acordar para fazer do dia seguinte não menos divertido que o anterior. Se possível, até melhor. Ser criança era sorrir de qualquer coisa, uma queda de um amigo, sua própria queda. Ser criança era tomar um puxão de orelha, como resultado de ter feito algo errado, ou por ser teimoso, mas no outro dia fazer de conta que nada aconteceu e ignorar todas as recomendações antes recebidas. Ser criança era cair e arranhar o joelho, chorar, mas, em poucos segundos, levantar-se para a vida.
Não consigo lembrar de uma infância, assim como da minha, de outra forma. Havia um bulício que direcionava simplesmente na celebração da vida. O vigor da época corria nas veias. Os ventos dos sonhos esvoaçavam os cabelos. A adrenalina dos perigos não embotava o desejo das descobertas, de modo que as aventuras se tornavam apenas meras coadjuvantes necessárias a esses momentos. Não era possível desenhar o mundo de uma criança de outro jeito. Pelo menos é assim que pinto o meu.
Mas hoje, aqui e ali, não é este o curso normal das experiências, pois o normal cedeu lugar ao que antes era inadmissível; o sabor da época juvenil foi tragado pela morte; o cheiro de ânsia de vida, esfacela-se na ignorância e na brutalidade de adultos; o brilho dos olhos de ser criança tem se acidentado fatalmente em penhascos de arbitrariedades. O mundo das imaginações (como quando se cria ao se ler um bom livro), fruto de mentes desprovidas de soberba, possível somente nelas, as crianças, afasta-se a cada dia e um abismo gigantesco se apresenta diante delas. O futuro, pior, tem sido posto dentro de uma redoma intransponível, onde o ódio se avizinha e grandes soldados vestidos de incoerência e frieza guardam esse lugar. Impossível não descrever de outra forma.
Ah, minha amiga Vida, essa semana fiquei assombrado com uma criança que se rendeu ao ver uma máquina de fotografar empunhada por um homem. Levantou as mãos e mordeu os lábios de tão grande tensão. Na verdade, não levantou as mãos: levantou apenas o pedido pela vida e rejeitou a morte. Ela viu naquela aproximação o fantasma que a assombrara, o fim de tudo. Suas mãos revelaram a rendição da infância diante da mortalidade que aflige ainda hoje seu país.
Fico pensando, dona Vida, o que será, de um ser pequeno e frágil, que tem a alma como que de uma seda branca, esperando serem gravados os registros da sua história, experimentando sentimentos tão incompatíveis com seu estado psicológico, com a sua idade. Quais histórias gravará na sua existência? As mãos para o alto revelam o descostume com a vida, ao passo que, de forma profunda, uma relação estressante com a guerra e suas atrocidades. As mãos para o alto são o sinônimo do medo e ao mesmo tempo a demonstração de que já não há um ato nem mesmo de fuga, como consequência natural humana. O simples - uma câmera fotográfica - transforma-se em arma, pois na verdade não é o objeto em si que causa isso, mas toda uma construção de experiências mórbidas e dolorosas que tem no adulto o seu agente principal.
Ele, munido de quaisquer parafernálias, torna-se um algoz, e não importa se é uma máquina ou apenas um pau de self, ou uma metralhadora mesmo; para quem já não consegue respirar o mundo infantil com a suavidade que lhe é inerente, quem sabe um braço de boneca pode ser capaz de fazer os olhos serem arregalados e as mãos virem ao alto, numa resposta imediata a qualquer possibilidade de violência. Quem vive o medo vinte e quatro horas por dia, não tem tempo para ser natural e para ver naturalidade nas coisas, porque lhe foram roubados a leveza da vida, o aroma e o sabor da existência. Ela não confunde máquina com arma; ela apenas assimila adulto à morte, adulto à dor, adulto à guerra, adulto à destruição.
Essa rendição, digníssima Vida, é um ato pela misericórdia; é o desnudamento da alma que já está acostumada a viver sob e sobre escombros, tendo despedaçados seus laços familiares mais profundos. Deparar-se com uma câmera talvez seja interpretar aquela instante como último, porque para alguns que conhecia, quando ouviram algo como um click, tiveram um encontro com a morte. Talvez o flash tenha trazido à lembrança o brilho dos rojões de uma noite permeada por bombardeios e tiros.
Não é difícil entender tal reação, quando se toma conhecimento do ambiente e suas particularidades. Mas me abisma, dona Vida, ver todos esses reflexos num ser tão dócil, frágil, pequeno, sem ideia até mesmo da existência. Pena quando não se tem noção da vida porque a morte tomou proporções incompreensíveis e vai plantando suas raízes na alma humana . Experimentar a morte em vida, torna-se portanto uma das maiores atrocidades causadas a um ser humano, mais ainda a uma criança. Pior que experimentar a morte na morte.
Essas mãos, amiga Vida, as interpreto também assim:
"Não atirem, não me matem.
Na verdade, a morte já é viver interpretando qualquer movimento diferente como um pesadelo do qual não posso acordar.
Minhas mãos para cima dizem que já não tenho nada para ser levado. Estou rendido.
Revistem-me e verão que já me desarmei faz tempo.
Desarmei-me de lutar pela vida, de acreditar no futuro, de ver bondade no homem, de compreender porque essa guerra mata e fere tanto.
Estou, mesmo criança, desarmado da inocência e da pureza,
e tudo que consigo perceber é que ainda me resta respirar,
mas não sei por quanto tempo."
01.04.15
By Jahilton Magno
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