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DESCULPAS - O encontro doloroso com a realidade.

DESCULPAS - O encontro doloroso com a realidade.
Olá, digníssima Vida. Hoje talvez nem tenha vindo escrever. Deu-me mais vontade de chorar do que registrar sílabas sobre minhas reações ao funcionamento da vida. E, ainda assim, se somente chorasse sobre o papel, enviá-lo-ia, úmido da minha dor. Andei me recordando de alguns infortúnios. Mas tenha calma, nada que causei a alguém ou que venha a ter prejudicado a outrem. Digo desse prejuízo material do qual estamos acostumados a ver no desenrolar da vida. Não, nada disso. Mas não são coisas do passado?  me indagas. Sim. E o que fazer se o passado parece não passar e mais próximo se encontra quando recosto a cabeça ao travesseiro? E não somente nesses momentos. Aplaca-me o peito uma dor funda quando também vejo algumas vidas com as quais mantive contato noutra época. Assim como também me avilta o íntimo ver que o hoje poderia ser diferente. Sim, diferente. Por que?  me perguntas. Tem a ver com decisões, com falta de reflexões e com a insanidade jovial com que vivi certas circunstâncias. Tem a ver com alvo, com sonhos.
Queres saber mais, dona Vida? Pois está. É que já fui ouro. Sabe, quando se é uma pedra de ouro? Melhor dizer, diamante. Sabe o diamante? Aquela pedra preciosal? Mas, para que valha mais, tem que ser lapidada, tratada, trabalhada. Depois de pronta, foge à capacidade de expressar palavras. É algo indizível. Esse processo tem a ver com passado, presente e futuro. Pedra bruta uma hora. De repente, uma descoberta e o valor do produto; depois, uma projeção de mudança e lucro.
Na vida, fui diamante, natural. Trazia na minha construção valores a serem confeccionados pela destreza de um ourives. Ao final, renderia bens, não esses duráveis, que se exaurem mais rápido ainda na ilegitimidade irresponsável de quem os carrega. Não, dona Vida. Os bens que seriam esculpidos eram aqueles que deixam tatuagens na alma e nem o tempo os apaga. Aqueles irrevogáveis, com os quais se estabelece relação para a eternidade.
Todavia, no tempo, deixei que isso escapasse. Irresponsabilidade, imaturidade, soberba, incapacidade de ser adulto. Ai, ilustríssima Vida, não sei se consigo continuar! Não sei se choro ou se continuo esta carta. É que me consome a angústia de ter sido muito mais que relapso. Fui mesquinho. Fui egoísta, pois hoje, entendo que se não beneficiei a quem quer que seja, privei a qualquer fragmento da humanidade a sorte de ela ser melhor. Dona Vida, há perdão quem tal mal causa? Se existe, ainda não aprendi a me relacionar com ele. Apresente-me-lo, tens como? Necessito que a paz me visite as entranhas e pouse em mim.
Se lágrimas desidratam o corpo, aprendi que minha alma está desidratada à beira do desfalecimento. Soluço, arrependido, em meio aos sofrimentos que só eu sei, pois a pedra continuou ali, escondida pela inércia da minha atitude, debaixo dos porões da meu desconexo e incompreensível modo de levar os dias. Perdoe-me as lágrimas que mancham o papel e borram as letras, honrosa Vida. Parte de mim agora é letra, outra parte é apenas uma tentativa de não parar de preencher as linhas.
O que dizer, pois, ó amiga Vida, diante de tudo isso? Em pensar que trucidei chances de riso; que deixei que se perpetuassem tristezas; que não fui a espada a degolar a maldade que escravizava os corações. O que dizer de mim e a mim mesmo, quando, hoje, tanto tempo depois, reconheço que no recolhimento da minha mão, deixei de levar luz? O que dizer, quando, hoje, diante de alguns fatos, alguma esperança eu tinha a dar a um coitado coração e não o fiz? O que dizer se hoje posso refletir que em alguma vida não fui jardim e deixei de propiciar ambiente seguro para uma flor crescer? O que dizer, dona Vida, se abortei sonhos em mim e noutros?
É, cara Vida, sei que é doloroso tornar-se diamante lapidado. Dá muito, muito trabalho. Às vezes, o caráter pensa não suportar a dor das transformações. O trabalho do Ourives é cirúrgico, paciente. Mas dói menos que a dor do arrependimento. No sofrimento, tu choras sem consolo. Na lapidação, tu choras com companhia ininterrupta. No arrependimento, tu amargas a decepção de saber que poderia ter sido. Na lapidação, tu sonhas a alegria de ser construtor da história. Na lapidação, consome-te o amargor da indiferença de quem te viu no início uma pedra. Na lapidação, não é o louvor que te enaltece, mas a satisfação interior que te diz que valeu a pena ser participante essencial da tessitura da vida.
Quando se é pedra lapidada, o futuro te sorri com docilidade, porque compreende que, no devido tempo, a ti são devolvidos os frutos de um ato bondoso. Lapidado, desorganizo o caos e reorganizo a vida. Tratado, sou a gênese que flui o Rio da Vida. Trabalhado, encaminho direções corretas. Porém, sendo pedra, apenas consigo deixar de cumprir meu papel. De riso, passo a choro; de esperança, passo a ser descrédito; de aconchego, passo a ser solidão; de acolhimento, passo a ser abandono.
Dona Vida, desculpe por hoje. Não consigo mais escrever. Perdoe-me a franqueza e os borrões do papel. Talvez eles sejam a medida do que se vai aqui dentro. Obrigado pela certeza da sua compreensão. Vou deitar o sono de uma luz que me veio: EU PODERIA SER MELHOR. Tudo é uma questão de decisão.




25.03.15

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