Os nossos últimos dias sofreram mudanças
inimagináveis. As rotinas foram abaladas. As relações precisaram se
reconfigurar. Os trabalhos se redesenharam, isso quando possível, porque muitos
até necessitaram parar. Amizades sentiram o choque. Os abraços tornaram-se chances
de morte. Nas escolas, deixaram de ser ouvidos os gritos tão normais em
horários de intervalo entre uma aula e outra. As ruas agora se encheram de um
vazio silencioso e uma atmosfera de medo e desesperança tomou nossa nação. O
sentimento que rodeia os corações não é o de folguedos, como há pouco no
carnaval. Músicas pelos quatro cantos do país já não se ouvem. Tudo sofreu um
abalo inigualável.
A alegria do brasileiro, tão
conhecido pelas suas festividades, suas comemorações, seus cultos, seus
churrascos de final de semana, seus jogos de futebol em todo o território, suas
baladas, suas baterias, suas festas de forró, funk, reggae, brega, calypso, sofreu
transformações. Enfim, alguma coisa alterou o curso da vida num dos países mais
festivos do planeta.
Talvez tudo que a nação esteja
sofrendo nunca tenha sido imaginado pela mente mais fértil. Hoje, dois dias
após o seu início, até o outono foi esquecido; ninguém o comemorou, ninguém o
saudou, ninguém lhe recebeu de braços abertos. Ele passou. Passou absorto,
negligenciado. As pessoas ficaram indiferentes perante as folhas que caem e as
novas que nascem. O amarelo delas agora é a palidez dos habitantes. Alguma
coisa mudou o rumo natural das coisas.
O frenético vai-e-vem dos seres que
cospem fumaça diminuiu. O dinheiro ficou escasso. Os supermercados, decerto,
sentiram o impacto. O comércio tremeu. A bolsa de valores foi jogada à lona. Os
ricos temeram e tremeram. Isolaram-se. A mídia se rendeu a um único tema, e o
suspense e a incerteza pairaram sobre o ar. As aglomerações foram proibidas, e
aquela visita a papai e mamãe já não são recomendadas. Ir à igreja no domingo
tornou-se agora um risco. Fazer caridade em asilo, nem pensar. Visitar os
enfermos, fora de cogitação. O pai, ou a mãe, ou filho, ou irmão, ou a esposa,
ou o marido tiveram seu momento de visitar o preso alterado.
Talvez nunca o micro tenha afetado
tanto o macro como agora. O invisível atingiu o real, o tangível, o palpável,
derramando lágrimas, encerrando relações, separando vidas, tecendo linhas de
sofrimento e luto, calamidade e aflição, trazendo à tona um quadro desconhecido
e incomum. O micro golpeou o macro em todas as vertentes: o pobre e o rico, o
oriental e o ocidental, o professor e o analfabeto, o ateu e o crédulo, o latifundiário
e o sem-teto, os atletas famosos e aquele sem clube, o juiz e o réu, o
empregador e o desempregado, o pastor e o cientista, o hétero, o bi, o homo, o trans,
o médico e o paciente.
O micro desestruturou o macro. O mundo tornou-se um Aquiles golpeado no
tendão e por algo ainda muito, mas microscopicamente muito menor que uma flecha.
Rendeu-se. Tombou. Foi ao chão e entendeu que é mais frágil que cogitava. Viu
sua glória vilipendiada. Sua riqueza, incapaz. Sua soberba, saqueada e seu
egoísmo contribuindo ainda mais para sua desgraça. Assim num ato de desespero,
eleva os olhos aos céus e busca em deuses uma explicação, uma solução, uma
cura. Aguarda dos cientistas – a quem paga mixaria para pesquisar sobre a vida –
uma vacina que seja descoberta o mais rápido possível. O macro sucumbiu diante
do micro e tudo mudou, de fato.
Todos tiveram as relações
redimensionadas. Algumas ausências se aguçaram mais ainda. A distância se
agravou. Os desencontros se aprofundaram demasiadamente. A falta do abraço
agora é mais sentida. A dor da separação se intensificou. Sobram lágrimas,
soluços, questionamentos, dúvidas. Por outro lado, alguns têm mais perto os seus
entes. Sobrou-lhes tempo para a companhia, para o aconchego, para a
cumplicidade e o carinho, para a conversa e para lavar as louças juntos. A
agenda foi modificada e agora, no cardápio do dia, há um prato de filmes
juntos, séries em parceria, pipoca. Há
tempo para brigar para trocar o canal. Há tempo para tomar café juntos, almoço
juntos, jantar juntos. Há tempo para curtir mais um pouco a vida e, de repente,
ainda lembrar saudosamente alguns momentos gravados no passado.
Tudo mudou, é fato. Essas mudanças
vieram no mesmo tempo do outono. E, como na época da trocas das folhas, seja
percebido que a vida é feita de estações. Estações que carregam características
muito peculiares. Que sejamos capazes de vislumbrar algo bom em todo o caos.
Talvez o que abalou o mundo venha nos mostrar que estamos dando mais valor ao
macro – trabalho, estudos, sonhos, etc. – e perdendo a capacidade de nos
conscientizar que o micro – as nossas relações – são indizivelmente importantes
para o bom curso da vida. Que a vida deve se embrenhar da vida e na vida para
parir vida. Que o abraço não deve ser algo riscoso, mas inerente à vida. Que a
visita faz tão bem e eleva a imunidade. Que a distância maltrata e dilacera.
Que o beijo é tão normal e tão gostoso. Que assistir à tv juntos pode ser tão
carregado de cumplicidade. Que sorrir com o outro faz bem à alma e ao
fisiológico. Que estar juntos é uma questão de sanidade e saúde física, mental
e espiritual.
Jahilton Magno, 22.03.2020.
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